O rio
A luz do Sol varre seu rosto e traz à tona duas pequenas
lagoas de sardas. Beleza que inunda a vista. Seu cabelo marrom é grosso e seco.
Comprida, a franja causa metade duma cegueira. Você faz meio bico com o lábio
inferior e resolve o incômodo colocando os fios para circular no ar, presos num
carrossel invisível.
- Que foi, pai?
Respondo com um sorriso. Caminhamos em silêncio. Sua companhia
quase muda me faz gostar ainda mais de você. Apoio a mão no ombro, sinto nos
dedos o calor da sua pele. A gente evapora devagar. Eu vou virar fumaça antes
de você. Muito antes, assim espero.
A trilha é feita de pedregulhos e capim nascendo onde não
deveria. Tudo é novo pra você. E sempre foi assim. Você engole o mundo com a
boca da curiosidade. Traduzo o pouco que sei num cardápio que é infinito.
Um céu completamente azul e você tira os óculos escuros
da gola frouxa da camiseta listrada. Nessas duas telas pretas espelhadas, vejo
meu reflexo projetado. Que você nunca seja igual a mim. Nunca.
A correnteza é música. Você sai correndo com 100
pernas e um desbotado par de tênis. Um tropeço, mas seu joelho nem toca o chão.
Você olha pra trás, pra mim, sorrindo. Olho pra baixo tentando acortinar meu
quase-choro.
Alcanço o rio e vejo, de longe, você mergulhando sem
tirar a roupa. Sua gargalhada pula de galho em galho, voa alto e se atira,
solidária, na água.
A correnteza preguiçosa te arrasta sem turbulência. Você
ama a solidão que proporciono, mesmo estando ao seu lado. Admiro o estrondo dos
seus pensamentos, o relampejar do fim da infância. Eu sou o rio, eu passo. Mas
você fica. E se avoluma.
Sua testa lisa e molhada é ilha virgem. Seu nariz perfeito
e intrometido é cordilheira móvel. Sua boca enruga e lembra minha pele. Penso
no meu próprio fim e morro no hoje. Agora, já, a gente não precisa desse
futuro.
Você carrega nos bolsos da bermuda toda a água do mundo e
13 seixos, um para cada ano vivido. Sugiro desenhar algo com eles nessa terra
úmida e escura. Você monta uma cruz invertida e sai correndo, rindo
loucamente. Não consigo disfarçar o espanto. Rearranjo as pedras pra formar um
coração e saio te perseguindo.
Te alcanço, você pergunta: - Você fez um coração com as
minhas pedras, né? Você é ridículo.
Sua risada enche meu peito. Que você dure pra sempre. Eu
sou só o rio.