19.1.16

O rio

A luz do Sol varre seu rosto e traz à tona duas pequenas lagoas de sardas. Beleza que inunda a vista. Seu cabelo marrom é grosso e seco. Comprida, a franja causa metade duma cegueira. Você faz meio bico com o lábio inferior e resolve o incômodo colocando os fios para circular no ar, presos num carrossel invisível.

- Que foi, pai?

Respondo com um sorriso. Caminhamos em silêncio. Sua companhia quase muda me faz gostar ainda mais de você. Apoio a mão no ombro, sinto nos dedos o calor da sua pele. A gente evapora devagar. Eu vou virar fumaça antes de você. Muito antes, assim espero.

A trilha é feita de pedregulhos e capim nascendo onde não deveria. Tudo é novo pra você. E sempre foi assim. Você engole o mundo com a boca da curiosidade. Traduzo o pouco que sei num cardápio que é infinito.

Um céu completamente azul e você tira os óculos escuros da gola frouxa da camiseta listrada. Nessas duas telas pretas espelhadas, vejo meu reflexo projetado. Que você nunca seja igual a mim. Nunca.

A correnteza é música. Você sai correndo com 100 pernas e um desbotado par de tênis. Um tropeço, mas seu joelho nem toca o chão. Você olha pra trás, pra mim, sorrindo. Olho pra baixo tentando acortinar meu quase-choro.

Alcanço o rio e vejo, de longe, você mergulhando sem tirar a roupa. Sua gargalhada pula de galho em galho, voa alto e se atira, solidária, na água.

A correnteza preguiçosa te arrasta sem turbulência. Você ama a solidão que proporciono, mesmo estando ao seu lado. Admiro o estrondo dos seus pensamentos, o relampejar do fim da infância. Eu sou o rio, eu passo. Mas você fica. E se avoluma.

Sua testa lisa e molhada é ilha virgem. Seu nariz perfeito e intrometido é cordilheira móvel. Sua boca enruga e lembra minha pele. Penso no meu próprio fim e morro no hoje. Agora, já, a gente não precisa desse futuro.

Você carrega nos bolsos da bermuda toda a água do mundo e 13 seixos, um para cada ano vivido. Sugiro desenhar algo com eles nessa terra úmida e escura. Você monta uma cruz invertida e sai correndo, rindo loucamente. Não consigo disfarçar o espanto. Rearranjo as pedras pra formar um coração e saio te perseguindo.

Te alcanço, você pergunta: - Você fez um coração com as minhas pedras, né? Você é ridículo.


Sua risada enche meu peito. Que você dure pra sempre. Eu sou só o rio.