30.10.19

O Sabor Do Vento


O bafejo quente de um dia silencioso. Em cada minuto cabe uma hora. A árvore balança seca. É daqueles dias que você acha que sua vida vai mudar. Mas tudo que respira se curva e fraqueja. Num horizonte claustrofóbico, o refúgio possível. Conhecido e incômodo.

No antebraço, o melado seco do suor. A abelha sem zumbido, determinada, onipresente. Te orbita como se fosse todas as 82 luas de Saturno. Pequena e determinada. Quieta e determinada. Você estende a mão. Ela te explora como um jipe teleguiado. E voa. Decepcionada. Superfície estéril de lugar nenhum.

O cheiro de asfalto derretendo. As pessoas sem força pra nada e com vontade de tudo. Os pregos caem da parede. Os azulejos se descolam lentamente. A música ecoa no ritmo dos ponteiros do relógio. A vida se liquefaz aos poucos, feito vitral de catedral antiga.

Por que o lugar cresce como se o chão desmoronasse? Por que tudo parece mais alto nos labirintos dos ouvidos? É assim que o coração bate? A secura na língua e nos olhos. As palavras se jogam da boca como se fosse beira de penhasco.

Agora você pode tudo. Mas quer nada. Viver foi te moldando pra quase não existir. E esse choro é mudo, cresce e murcha. Cresce e murcha. Ninguém nunca te prometeu coisa alguma. Mesmo assim, muito te foi tirado.

Pode ser que escureça, a não ser que teus olhos iluminem a rua. Você pisca e a fé treme.

O livro mofando. Tem plástico e garrafa no jardim morto da praça. A cadela dormindo com as patas pra cima. Nada parece vivo. Nada parece real. Nada é do jeito que deveria ser.

Palavras atravessam o silêncio como pequenas flechas. Esse corpo quieto e infinito sabe que já venceu a batalha. E, em sua mudez, espera pela serenidade imensurável.

Ela segura minha língua e eu sinto a textura áspera e familiar desses dedos. O gemido dela na minha boca. O hálito esfriou enquanto eu crescia.

No teto das pálpebras, nenhuma estrela cintila. A vontade de me entregar pra escuridão e deixar o nada me tragar.

Acordo com ela nua e desesperada, massageando meu peito. Me despeço com a cabeça. Rio e mando beijo. Num arco rápido e forte, um tapa bem dado na cara. Levanto sufocando e vejo um raio de luz se rastejando sob a persiana.

A escuridão acabou.