Chove querosene
A gente vive, mora e morre nessa cidade. A beleza dela só
se revela para alguns. Demanda reparo, não é óbvia. Exige de você um cuidado e
carinho que muitas vezes não é recíproco. É lugar que se devora e se cospe, uma
engrenagem sem lubrificação que nunca para de rodar.
O avião passa engolindo o silêncio e regando querosene
nas plantas secas. A janela emoldura um céu ensanduichado de cinza, rosa quase
roxo e que só vira azul de verdade nas estratosferas. A claustrofobia asfixiante
de um teto infinito.
Você dorme roncando baixinho. Levanto o copo com veneno
translúcido cor de sangue e te admiro através de pequenas ondas alcoólicas.
Nada é reto no teu corpo. Teu pensamento faz curva. Teu olhar abraça esmagando.
Duas criaturas encharcadas de fantasias derretidas. A cama
é palco sem plateia, uma peça nunca ensaiada e sempre reprisada. A gente
adivinha o gozo do outro, jogo mental que escorrega pros sexos. Mãos
dadas, tesões entrelaçados feito dedos.
Na contramão do bom senso, carros atropelam a
tranquilidade do lusco-fusco. Teu sono fica sobressaltado. Dorme sossegada, que
a gente ainda tem a noite toda pra se jantar. Eu queria viver dentro de você.
Sonho acordado enquanto visto a cueca.
O vidro na parede é quase uma redoma. Embaçado e
testemunha de tantas outras paixões. Lá fora, pequenas guerras são travadas por
exércitos solitários e sem generais. O escuro das horas vai derrubando a
temperatura. Lembro do teu hálito esfriando enquanto o orgasmo dissipava pelo
tampo da tua cabeça.
Sento na cadeira e penso na raridade de dias assim. A
gente extingue a vida muito antes de morrer. E vive com medo. E morre assustado.
O cigarro no cinzeiro queima feito incenso. Lambo as paredes. Cheiro o carpete.
Me esfrego no azulejo do banheiro. Aquele quarto, agora, está dentro de mim. E,
consequentemente, dentro de você.
Me olho a contragosto no espelho. Me odeio, não sei
o motivo de você gostar tanto de mim. Nem pergunto. Tenho sorte. As olheiras,
os cabelos embranquecendo, tudo é fora do padrão. Dentro então é bem mais
bagunçado.
Te descubro devagar pra não te acordar. O escorregar do
lençol na pele vai deixando um rastro de arrepios. Até os pelos invisíveis da
bunda estão de pé. Você resmunga sem acordar. Tá frio, muito frio. Ok, vou te
deixar em paz. Dorme, dorme. E sonha.
Hoje foi tudo um sonho. Sonha junto comigo.
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