Sangue seu
Chego do futebol, tiro a chuteira cheia de pequenas borrachas
pretas e manco até a sala.
Você tá de joelhos, com as mãos apoiadas nas coxas,
cabeça baixa e sangue pingando da testa. Pela janela, vejo o cachorro roçando
as costas na grama amarelada. Sementes de plástico pairando no ar seco e sujo.
Ajoelho na sua frente, aperto sua mão. Você é fria e sóbria.
Seguro seu rosto, admiro a geografia maravilhosamente delicada que é sua face, seus
olhos rolam devagar embaixo das pálpebras. Lambo esse sangue que cobre quase
todo um hemisfério da sua cara. Seu gosto é de madeira, ferro e decepção.
Você quase ri com metade da boca. Eu sempre te fiz rir.
Hoje foi quase.
Percorro desesperado sua pele, à procura da nascente
desse rio vermelho e caudaloso. Nem um buraco, arranhão, fenda. Te abraço sem conseguir
segurar o choro.
Num murmúrio suspirado: - não aguento mais.
- Onde foi o corte?
Você estende o braço esquerdo. Um talho de quase 30 cm. A
seiva carmim desenhou uma árvore morta na sua pele.
Sua vida toda passou diante de mim. Cauterizou na memória
a foto do seu quinto aniversário. Bolo, amigos, muitos amigos, e bexigas. Tão
feliz que quase duvido que aquela criança um dia foi você. A vida quebrou todas
as promessas que te fez. Eu quebrei todas as promessas que te fiz.
Você me ensinou a engolir vida e cuspir fogo. Hoje, essa
pessoa não existe mais. Moro há tempos com uma sombra, me culpo por não ter
acendido a luz. Ou aprendido a enxergar no escuro.
Seguro teu corpo mole nos braços, você pesa quase nada. Corro
pro carro, te acomodo torta no passageiro e saio dirigindo o mais rápido que a
máquina deixa. No retrovisor, a porta de casa escancarada, o cachorro no meio
da rua.
Nem 5 minutos no asfalto, e você começa a tossir sangue,
engasga. Seu crânio cai sem vida no meu ombro. Sem desacelerar, enfio o carro
no próximo poste.
1 Comments:
Muito bom heim jovem... Poemas sangrentos...
Postar um comentário
<< Home