22.10.15

Sangue seu

Chego do futebol, tiro a chuteira cheia de pequenas borrachas pretas e manco até a sala.

Você tá de joelhos, com as mãos apoiadas nas coxas, cabeça baixa e sangue pingando da testa. Pela janela, vejo o cachorro roçando as costas na grama amarelada. Sementes de plástico pairando no ar seco e sujo.

Ajoelho na sua frente, aperto sua mão. Você é fria e sóbria. Seguro seu rosto, admiro a geografia maravilhosamente delicada que é sua face, seus olhos rolam devagar embaixo das pálpebras. Lambo esse sangue que cobre quase todo um hemisfério da sua cara. Seu gosto é de madeira, ferro e decepção.

Você quase ri com metade da boca. Eu sempre te fiz rir. Hoje foi quase.

Percorro desesperado sua pele, à procura da nascente desse rio vermelho e caudaloso. Nem um buraco, arranhão, fenda. Te abraço sem conseguir segurar o choro.

Num murmúrio suspirado: - não aguento mais.

- Onde foi o corte?

Você estende o braço esquerdo. Um talho de quase 30 cm. A seiva carmim desenhou uma árvore morta na sua pele.

Sua vida toda passou diante de mim. Cauterizou na memória a foto do seu quinto aniversário. Bolo, amigos, muitos amigos, e bexigas. Tão feliz que quase duvido que aquela criança um dia foi você. A vida quebrou todas as promessas que te fez. Eu quebrei todas as promessas que te fiz.

Você me ensinou a engolir vida e cuspir fogo. Hoje, essa pessoa não existe mais. Moro há tempos com uma sombra, me culpo por não ter acendido a luz. Ou aprendido a enxergar no escuro.

Seguro teu corpo mole nos braços, você pesa quase nada. Corro pro carro, te acomodo torta no passageiro e saio dirigindo o mais rápido que a máquina deixa. No retrovisor, a porta de casa escancarada, o cachorro no meio da rua.


Nem 5 minutos no asfalto, e você começa a tossir sangue, engasga. Seu crânio cai sem vida no meu ombro. Sem desacelerar, enfio o carro no próximo poste.

1 Comments:

At 1:40 PM, Blogger A Marcha dos 10 Mil said...

Muito bom heim jovem... Poemas sangrentos...

 

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