27.2.07

Grunhindo

Quem é essa pessoa balbuciando enigmas na minha frente? Como ele estende a língua feito um braço? Tenta me alcançar com seu som primitivo. O enxoto como se não fosse eu mesmo um mendigo. Por que tenho vergonha da minha condição? Por que me sinto menos humano que as pessoas nos carros ou aquelas que têm dinheiro pra se vestir.

Por que meu pinguelo tem que ficar sempre à mostra? São os gambés que passam aqui e depois de me surrar e mijar em mim, ainda me deixam semi-despido?

Por que meu cheiro é quase uma pessoa? É pra todos vocês poderem se balizar: é isso o que vira quem não trabalha. Isso é o vagabundo, você quer ser assim?

Eu sou o modelo invertido. Tudo o que você não quer ser, mas que pode ter o azar de virar.

Quem é essa pessoa na minha frente? Percorro seu rosto com minha mão. É um superfície fria, lisa e reflexiva.

Eu recito poesias, filosofo, sou articulado pra caralho, mas as pessoas passam se assustam e, as que não saem correndo, desviam sem se preocupar em disfarçar.

Topa dois dedinhos de prosa com o escrotão aqui? Já sei a resposta: é sempre não. Mas eu insisto. Sou chato e inconveniente. Não basta eu estar bem escondido da sua vista em 99% do tempo? Esse 1% de aparição minha é quase institucional: se eu não apareço o capitalismo não funciona. Como as pessoas vão trabalhar se não sabem como é odioso ser um mendigo? Eu sou uma das porras das engrenagens do sistema, mesmo estando fora dele. Não é irônico pra cacete? Seus hippies, fracassados ou desesperançados, tentem fugir do sistema. Tentem. Ele vai até a sua choupana no meio do mato te arrastar de volta. É irônico pra c-a-c-e-t-e.

Se eu tivesse de terno, estacionando meu carro importado e fosse na sua direção, você desviaria de mim ou me levaria pro seu quarto e me devoraria?

Quem são todos vocês? Que é essa pessoa na minha frente?

O filho da puta do bar vive me dando bebida. É o imposto etílico que cobro pra não ficar esfregando meu pinto nas mesas e cadeiras do seu estabelecimento. Isso é divertido, pelo menos isso. É meu cinema, é meu domingo no parque, é minha orgia silenciosa com amigos de longa data em um subúrbio ridículo onde sou expelido pra longe de todos vocês.

Por que as pessoas não me entendem? Por que ninguém conversa comigo? Não bebi nada hoje. Não é o hálito do escapismo alcoólico necessário pra sobreviver. É o que então? Escovei os dentes com os dedos na água cheia de sabão que escorria da calçada lavada pela tia. O que é então?

Quem é essa pessoa na minha frente que não me entende? Quem é esse filho da puta? Eu vou te socar. Puta que o pariu.

O espelho nunca foi tão gelado. Por que eu me odeio tanto?