28.3.06

Calcinha Preta

Ele era normal. Só que roubava. Queria roubar bancos. Partir pra coisa grande. Mas não tinha culhões. Era um cleptomaníaco medroso. Deprimente. Mas era a vida dele. Ele só tinha coragem suficiente pra roubar uma caneta perdida num balcão, uma revista jogada no sofá, uma moeda embaixo da mesa. Pensando bem, cleptomaníaco é algo muito pomposo para o quê ele fazia. Ele era, na melhor das hipóteses, um ladrãozinho que pegava as coisas emprestadas para sempre, um trombadinha que não saiu do armário. E, por estar no armário, ele desenvolveu uma estranha mania. Sim, outra. Se vestir com roupa feminina. Como desenharia Adão Iturrusgarai em suas tirinhas: 1.000.000 de anos de análise. De deixar qualquer terapeuta com água na boca e pensando como vai ser fácil se aposentar. Ele se travestia por completo. Veja bem, ele não era: gay ou travesti. Ele simplesmente fazia isso. Fácil de explicar, difícil de entender. Assim é a vida de um cleptomaníaco de cinta-liga. É. Ele era detalhista. Melhor, calculista. Como qualquer cleptomaníaco amador deve ser. Calcular os pequenos riscos, dos seus pequenos roubos, da sua pequena vida. E usar cinta-liga é algo que ele não pode abdicar. Não por ele ter ascendência britânica (ou seja: uma forte carga genética que dá uma certa liberdade em praticar coisas bizarras), mas porque não usar cinta-liga era ter um pouco menos mania. E ter um pouco menos mania, era ser um pouco menos ele. Não era nada muito patológico. O dano material de sua cleptomania de bolso era mínimo. E usar roupas femininas não fazia mal a ninguém. Ele não tinha esposa. Então ela nunca pegaria ele, de surpresa ao entrar no quarto, de babydoll languidamente se olhando no espelho. Mas um dia apareceu alguém. Apareceu ela. Ela gostou muito dele. E ajudava ele mesmo sem pedir. E ele gostava. Ele sabia que alguma ajuda o ajudaria. Não que ele se incomodasse muito com sua situação. Eles se casaram. Um dia, na casa de uns amigos, ela viu ele roubando um porta-copos da copa de 86 “Rumo ao tetra, Brasil”. Aquele misto de sacanagem com inocência deu um puta tesão nela. Chegando em casa, ela tava no pescoço dele. Começaram a se agarrar. Ele chegou no quarto só de calça, ela toda nua. Selvagem, arrancou a calça do marido. Imagina todo o tempo que decorreu desde a criação do universo até hoje. Foi isso que durou aquele segundo. Ela deixou uma lágrima cair e foi embora. Ele tava de cinta-liga preta. E pra combinar: calcinha preta. A calcinha preta era dela. Ele correu. Só de cinta-liga preta, calcinha preta e meia preta atrás dela. Se ajoelhou e prometeu que nunca mais ia roubar ou se vestir de mulher. Ela ficou ainda mais brava. Parar de se vestir de mulher, tudo bem. Mas, pelo bem da vida sexual deles, ele nunca poderia parar de roubar.

1 Comments:

At 2:18 PM, Blogger Unknown said...

Que estrutura hein...

 

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