30.5.11

SBC

Pensou, debaixo da garoa que parecia infinita, em todos os índios, pretos, japas e carcamanos que morreram pra construir a esmo essa cidade.

Nesses prédios sem estilo. Nessa colina íngrime demais até pra quem não tá preso numa bosta de cadeira de rodas. Todas as fachadas deprimentes. Na nova loja de roupa que acabou de ser inaugurada e que daqui a 2 anos vai virar um pet shop, sem antes passar um ano com a placa de aluga-se na vitrine. Em todos os esqueletos de construções que foram pro limbo antes de ser habitados. Na avenida que sempre alaga. Nos camelôs da praça do lado. No rapa que sempre passa alguns minutos atrasado. No viaduto, na avenida/rodovia mais importante de toda região, que não tem começo nem fim. Só meio.

Essa cidade cresce aos espamos. Hoje são milhões de prédios em construção. Amanhã, bom, amanhã todo mundo foi embora.

Antes de entrar no único bar com alma daquele lugar, se arruma com o reflexo do vidro.

Era isso que tinha virado: um filho da puta que mete o pau no próprio berço. Triste. Mas podia ser pior. Essa terra te conforma a viver com os poucos recursos que te dá. A capital é longe sendo perto demais. Hoje tá muito frio. E são muitos os dias frios. E a gente já é velho aqui dentro.

A fábrica cobre o sol e joga sua sombra sobre toda a cidade. Todo mundo trabalha lá. Ou pra ela. Ou na cooperativa dela. Ou no clube dela. Ou nas lojas de móveis. Ou na rota dos restaurantes gigantes que mais parecem fábricas com suas linhas de produção de frango com polenta e covers ruins de músicas horríveis. Ou trabalham nos motéis.

Não entendia como todo mundo que morava lá não se matava ou consumia quantidades absurdas da droga mais barata e forte que desse pra achar. Talvez isso aconteça. Isso encheu o peito dele com uma esperança mórbida.

Tinha fugido o quanto antes pode. Da cidade. E da família.

Se olhando naquele reflexo, parecia mais velho do que gostaria. E a cidade parece irritantemente renovada. Os prédios em estilo neoclássico, ou contemporâneo, ou qualquer outra porra de palavra que vai ser violentada para que os homens de marketing te vendam o mesmo projeto requentado mais de 1000 vezes, estão em todo lugar. E a cidade que é só neblina e chuva fraca perde cada dia mais do seu céu acizentado. Existem mais do que dois restaurantes razoáveis na cidade agora. O velho shopping passa pela enésima reforma. A igreja. O paço.

É isso. Essa é a versão deles do paraíso possível. Uma vida passada em prédios. Dentro de shoppings. Nas concessionárias. Em festas ruins. Tentando pagar todas as dívidas que só mudam de nome.

Ninguém chegou no bar ainda. Ele entra e pede a bebida mais forte. Uma dose. Rápida. Que sobe mais rápido ainda. Seu coração dobra de tamanho e volta a bombear sangue. A tristeza que toma conta dele toda vez que volta pra sua cidade natal tinha ficado lá fora, na garoa.

A parede do bar é coberta por posters de filmes antigos legais. O balcão de vidro é recheado por várias revistas velhas de cinema. O lugar todo dá aquela sensação de conforto que um filme querido e uma pipoca quente dão.

Todos os seus melhores amigos são dessa cidade. Ou moram nela. Ou viraram amigos por causa dela. Ou de gente que também nasceu dela. Isso ele devia à cidade. Isso e ele próprio são produtos involuntários dessa terra. Que cospe e engole gente na mesma velocidade com que os carros da fábrica são feitos e descartados.

A espera pelos amigos e a segunda dose da bebida fizeram ele ficar com expectativas. Talvez seja uma noite legal, num monte de dias tóxicos. Onde viver era dormir pra não morrer.

Chega o primeiro. É só abraço. Sorriso. Afeto. Não precisa falar. Nem pensar. E assim foi. Um após o outro. Uma após a outra. Estavam todos lá.

Acabou sendo uma noite muito boa.

Na cidade que sempre tenta te arrancar um pedaço, ali, naquele momento, inteiro, ele foi realmente feliz. E tudo isso ele também devia aquele lugarzinho de merda que foi por onde ele nasceu.

3 Comments:

At 10:10 PM, Blogger Assis said...

Nunca tinha pensado nisso, mas fábrica de comida define perfeitamente o São Judas e correlatos. Muito bom.

 
At 1:30 AM, Anonymous Danilo Toth Lombardi said...

Caraleo que texto animal de bom! Isso é um retrato não só de SBC, mas de qualquer cidade.
Fora a citação "Humberto Gessinger" Estamos tão perto e tão longe da capital.

Muito bom!

 
At 5:12 PM, Anonymous Andjohollister said...

Quiospa! podemos divergir em muitas coisas, mas, nesta análise do solo natal, você simplesmente colocou tudo o que sinto.
Texto duca!

 

Postar um comentário

<< Home